A guetização dos ciclistas de Porto Alegre

Texto de Daniel Cunha:

As obras de engenharia e de arquitetura, mais do que estruturas e construções, sempre deixam as marcas de sua intenção em seu resultado final. O caso da estrutura cicloviária de Porto Alegre oferece um claro exemplo disso. Tomemos a ciclovia da avenida Ipiranga. Ela foi construída fora do leito da pista, sobre o talude que margeia o Arroio Dilúvio. Por isso, há  obstáculos na pista, como postes de energia elétrica, que causam estrangulamentos na faixa de circulação. Ela está localizada embaixo de fios elétricos de alta tensão. Há cercas de ambos os lados da ciclovia, que a isolam e dificultam o acesso. Por fim, conforme prevê o projeto, será necessário trocar de lado na avenida cinco vezes ao longo do trajeto. Em termos de trânsito de bicicletas, seria difícil imaginar algo pior do que isso. De fato, o que se materializa neste projeto é a clara intenção, não de facilitar o tráfego de ciclistas, mas de afastá-los do leito da pista para que os automóveis possam trafegar sem precisar compartilhá-la. A bicicleta é claramente tratada como um problema, um incômodo a ser “gerenciado” e apartado. Em suma, um verdadeiro gueto para confinar os párias que ousam fugir à norma do transporte individual motorizado-poluidor.

Analisemos agora as novas ciclovias cuja concepção inicial de projeto foi apresentada recentemente em reunião com a comunidade na Cidade Baixa. Na Loureiro da Silva, propõe-se construí-la junto ao canteiro central, justamente o local de pior acesso, que isola os ciclistas. Na José do Patrocínio, propõe-se uma ciclovia bidirecional, o que aumenta muito o risco de acidentes, além de provavelmente restringir o espaço potencial para bicicleta. Na Érico Veríssimo, a proposta é fazer a ciclovia sobre o canteiro central, embretada em meio às árvores. Mais uma vez, a bicicleta é tratada como um problema a ser gerenciado, os ciclistas são espremidos e jogados sobre terrenos improváveis, para que os veículos motorizados possam se deslocar sem ser importunados em seu sagrado deslocamento. As soluções óbvias – ciclovia na margem da pista na Loureiro da Silva, duas ciclovas unidirecionais na José do Patrocínio e na Lima e Silva e ciclofaixa no leito da pista na Érico Veríssimo – não são cogitadas.

Conforme o arquiteto que apresentou as propostas da prefeitura, é preciso haver “tolerância” para com o trânsito de bicicletas. Trata-se de discurso que apenas confirma o processo de guetização dos ciclistas. Ou alguém imagina que o movimento feminista reivindica que as mulheres sejam “toleradas” pelos homens? Ou que os movimentos antirracistas demandem que os negros sejam “tolerados” pelos brancos? “Tolerância” pressupõe a reprovação. De fato, as ciclovias construídas e projetadas pela prefeitura são monumentos à “tolerância”: toleramos os ciclitas, desde que estejam fora do nosso caminho, apartados do espaço onde circulamos, espremidos em guetos. Elas são o registro físico, na forma de obras de engenharia, da opção política incondicional da prefeitura de Porto Alegre: a prioridade absoluta e intocável da circulação de automóveis – a mais insustentável forma de transporte urbano – sobre as demais formas de locomoção. Enquanto esta política não for modificada, não haverá uma única ciclovia decente nesta cidade.

O que os ciclistas de Porto Alegre querem não é “tolerância”. Não queremos ser “tolerados” pelo prefeito, pelo presidente da EPTC ou pelos motoristas. Não queremos pedalar em guetos que eles chamam de “ciclovias”. O que queremos é respeito e dignidade.

Esse post foi publicado em Sem categoria e marcado , , , , , . Guardar link permanente.

15 respostas para A guetização dos ciclistas de Porto Alegre

  1. Daniel disse:

    Perfeita a figura, Marcelo!

  2. andre gomide disse:

    parabéns pelo post…onde assino?

  3. Aldo M. disse:

    Excelente post, Daniel! Na minha concepção, não há um único centímetro de ciclovia ou ciclofaixa em Porto Alegre. Todos não passam de passeios públicos que receberam asfalto pintado de vermelho. Em alguns casos, foram úteis para os pedestres, mas criaram conflitos com os ciclistas.

    Na José de Patrocínio, com suas calçadas ultra-estreitas, serão apenas extensão do passeio público e inúteis para os ciclistas. Estes continuarão a utilizar o leito da via e, quando forem atropelados, os carrocentristas decerto irão comemorar e sugerir que o infame atropelador do VW-Golf preto talvez tivesse razão.

    Eu proponho que se alerte aos ciclistas para não utilizarem as perigosas calçadas pintadas de vermelho que esses embusteiros estão empurrando aos cidadãos de Porto Alegre. Os motoristas também devem ser alertados para não criar conflitos com os ciclistas que continuarão a usar o leito das vias.

    Enquanto esse desgoverno estiver por aí, a única saída para os ciclistas é continuar exercendo o direito de uso prioritário das vias públicas sobre os automóveis, e que felizmente tem contado com o respeito e apoio maciço dos motoristas de Porto Alegre.

    A cada vez maior presença de ciclistas nas ruas de Porto Alegre está fazendo os motoristas diminuírem a velocidade e se tornarem mais cuidadosos, o que está ajudando a reduzir a gravidade dos acidentes em geral. É patético que o diretor da EPTC atribua essa humanização crescente no trânsito às suas campanhas de conscientização.

    • Daniel disse:

      Pois é, Aldo. Como próprio arquiteto da EPTC lembrou, a José do Patrocínio é o coração do movimento dos ciclistas. Se não fizerem ali uma ciclovia decente, como manda o figurino (unidimensional, com a largura adequada, etc.), irão fazer onde? Uma ciclovia meia-boca naquela região, que ainda por cima é plana e tem muitos ciclistas, beira o acinte.

      • Olavo Ludwig disse:

        Nas reuniões com a eptc em 2011 eu fiz uma pergunta parecida sobre a Loureiro, quando disseram que não tinha espaço suficiente na via. Eu perguntei: “Se não tem espaço suficiente na Loureiro para construir algo descente, onde tem espaço em Porto Alegre?” A resposta está vindo desde então…”sobre as calçadas!!!!”

  4. Pablo disse:

    Como é que na Europa, com cidades milenares há espaço e em Porto Alegre não? Não falta espaço, falta vontade, só isso.

  5. andre gomide disse:

    ainda vão tentar construir uma “ciclocoisa subterranea”….hehehehhehhe

    • Daniel disse:

      O sonho sádico deles é fazer as ciclovias nas galerias de esgoto pluvial. Mas só depois de alargar a Lima e Silva, para que o trânsito possa fluir melhor.

  6. Igor Oliveira disse:

    Excelente texto. Parabéns.

  7. Walter disse:

    a Ipiranga deveria receber uma ciclofaixa e uma faixa exclusiva para onibus. Eh absurdo os onibus ficarem no mesmo engarrafamento que os carros.

    • Aldo M. disse:

      E ambulâncias também! Uma provável má fé de governantes corruptos e seus corruptores não pode explicar tamanhos absurdos (e os empresários de ônibus nem reclamam!). Na minha visão, só consigo explicar pela extrema ignorância, estupidez, enfim, completa incompetência dessa administração municipal e do grupo de “espertos” que a apoia. E, é claro, como diz o ditado, a ignorância é vizinha da maldade.
      Eles nem têm capacidade de compreender que bicicletas são veículos. Então, designam arquitetos para fazer projetos urbanísticos, que são estáticos, e não projetos viários e de circulação, que são dinâmicos. Desta forma, não há a menor possibilidade que suas soluções ajudem pedestres e ciclistas a se movimentarem melhor. Estes continuarão a dependee de suas habilidades e muita sorte para transitarem numa cidade onde se inverteram as prioridades dos modos de transporte.

  8. Pingback: Os verdadeiros vândalos | O radical livre

  9. Pingback: J’accuse: os verdadeiros vândalos | Baierle & Co.

Deixe um comentário